Giuseppe Musella: Homem da retaguarda

O fortíssimo crescimento do Grupo Boticário nos últimos anos só foi sustentável porque um time muito competente, liderado por Giuseppe Musella, instituiu bases sólidas, flexíveis e ágeis para acompanhar o avanço dos negócios


Dobrar, triplicar, quadruplicar o faturamento da empresa... Atingir resultados dessa magnitude costuma deixar empresários e profissionais das áreas de Vendas e Marketing justificadamente orgulhosos. Afinal, números estrondosos costumam ser uma prova cabal de competência e sucesso.

Só que na esteira de números de encher os olhos, os riscos de colapsar a operação são igualmente relevantes. Afinal, é preciso dar conta de suportar tanto crescimento em períodos tão curto de tempo. Isso envolve criar e desenvolver centenas de novos produtos, encontrar capacidade produtiva, alinhar a cadeia de fornecedores para que não falte matéria-prima ou embalagens, garantir que existirão veículos de entrega suficientes para despachar todo o material... É um trabalho gigantesco. Ainda mais no mercado de beleza, em que a dinâmica natural pressupõe produtos com ciclos de vida curto e a necessidade de movimentar regularmente a maior parte do portfólio; e num país como o Brasil, onde a cultura de planejamento ainda é relativamente nova para a maioria das companhias.

Ao longo da história da indústria cosmética no Brasil, um sem número de empresas ficaram para trás justamente quando se acreditava que elas viviam o seu melhor momento. Vendas em alta, investimentos em comunicação, ampliação de fábrica... Pouco tempo depois, o negócio começa a implodir.

Crescer não é fácil e fazer a transição de uma empresa de médio, ou mesmo de grande porte, para a de uma corporação com vendas já na casa do bilhão costuma ser tarefa das mais difíceis. Afinal, não dá para navegar um transatlântico como se fosse uma lancha. É preciso planejar-se e estar preparado para tocar o negócio de um jeito diferente.

Poucas companhias foram tão bem sucedidas em fazer essa transição quanto o Grupo Boticário. Um negócio que entre 2007 e 2010 dobrou de tamanho, depois quase dobrou de tamanho de novo, abriu novas unidades de negócios e canais de distribuição e, ainda hoje, segue em ritmo de crescimento bem acima do mercado. Olhando para trás, parece que a empresa estava predestinada a crescer, tinha uma marca conhecida, respeitada e querida pelos consumidores, produtos excelentes, uma grande rede de lojas, equipe com grandes profissionais e a relevância de há muito ser uma das grandes empresas de beleza do Brasil, entre outros predicados bastante evidentes. Mas também existe uma parte menos visível em toda essa história, só que igualmente fundamental. Todo esse crescimento sem sobressaltos só foi possível porque foi executada toda uma revisão operacional da empresa, que deu segurança para quem estava na outra ponta, fazendo o negócio acontecer, avançar com os dois pés no acelerador. Um das cabeças desse processo foi o executivo de origem italiana, e criado na Venezuela e brasileiro por escolha, Giuseppe Musella, diretor executivo de Operações e responsável pelas áreas de P&D, Qualidade, Segurança e Meio Ambiente, Suprimentos, Industrial e Supply Chain.

Formado em Engenharia de Materiais na principal Universidade da Venezuela, onde viveu desde os sete anos de idade, Giuseppe evoluiu como profissional com as mãos na massa. “Na realidade eu passei por tantas experiências que isso é o que, de alguma forma, foi a minha formação.” Sua carreira começa em 1986 na área de Logística, como supervisor de turno ainda na Venezuela. A partir daí, a carreira se desenvolveu em diferentes países, empresas e atuação em quase todas as áreas, numa carreira que já soma quase 30 anos em posições de alta gerência e direção de áreas operacionais. Ele trabalhou na P&G e na Kraft na Itália e na Venezuela, até chegar à Ceras Johnson, em 1997, primeiro como diretor do Grupo Andino, e depois, já no Brasil, como diretor de Operações para o País. Desde então, apesar do português carregado por um indefectível sotaque italiano, Giuseppe é um homem do Brasil. Depois de mais dois anos na Ceras Johnson e uma escala de três anos no segmento de Petroleo e Gás – com passagens pela Shell e pela Minasgás, até 2005 – ele aterrissa em São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba, e começa a dar expediente na sede de O Boticário.

Mudança de mentalidade
Ele chegou à empresa no momento certo, quando O Boticário – já uma das maiores companhias de beleza do País – começa a estudar como organizar-se e posicionar-se para crescer no futuro. O resultado desse trabalho resultou uma mudança de mindset que iria transformar completamente o modelo e o próprio papel da área de Operações na empresa.

Em 2005, O Boticário faturou cerca de R$ 600 milhões. Ainda hoje seria um número excepcional, alcançado por não mais do que cinco empresas de origem local. Mas, a empresa queria ir além e entendeu que para seguir crescendo de maneira sustentável, seria preciso fazer ajustes e mudanças. Para o diretor de Operações, de imediato, alinhar o planejamento de curto e médio prazo – especialmente no período entre 2006 e 2008 – foi o pulo do gato para a companhia fazer a transição de uma empresa de médio porte para se transformar numa corporação. Nesse processo, Giuseppe desempenhou um papel central. A diretoria de O Boticário reunia um time de profissionais extremamente competentes, oriundos de empresas com culturas e conhecimentos diferentes. Mas, como lembra Giuseppe, particularmente nenhuma dessas pessoas vinha de uma empresa com cultura forte em planejamento de cadeia. E quando ele entrou na empresa, cuidar da cadeia de abastecimentos era a sua principal função. “Eu me permito dizer que S&OP (sigla em inglês para planejamento de vendas e produção) era desconhecido, ou, se era conhecido, não era tratado como uma ferramenta prioritária. E ela é indispensável para você alinhar a cadeia com o que você vai vender. Existiam planos comerciais, de comunicação, de lançamento, só que isso não estava sendo integrado em lugar nenhum. Eram planos independentes, o que cria mais confusão. Ao extremo, tínhamos o risco de lançar um produto, promocionar outro e fabricar outro. Isso podia acontecer”, recorda.

O grande desafio para O Boticário era alinhar a cadeia de abastecimento para atendimento dos clientes. Na época a empresa tinha problemas importantes de abastecimento, gerados principalmente pelo desalinhamento dos planos comerciais e da cadeia. Mais do que uma simples mudança de visão operacional, é alinhada a essa visão que O Boticário deixa de ser uma empresa empurrada e passa a ser uma empresa puxada. Ou, traduzindo, quando ela deixa de ser uma empresa industrial e passa a ser uma empresa de mercado, guiada pela lógica comercial de fabricar e entregar o que o cliente quer comprar e não necessariamente o que a empresa quer fabricar e vender. “A primeira coisa que eu fiz foi uma mudança cultural, em colocar todos os setores da área de Operações focadas em atender ao franqueado”, afirma o diretor.

Máquina de lançamentos
Em paralelo ao rápido avanço de O Boticário, em 2009, quando a empresa decide criar os novos negócios que viriam a compor o Grupo Boticário – apresentado oficialmente em 2010 – como a Eudora e quem disse, berenice?, um ponto chave para viabilizar as novas marcas em um prazo tão curto de tempo, era adquirir a capacidade de desenvolver produtos com muita velocidade. “As bases tecnológicas para lançar Eudora são similares as de O Boticário, por exemplo. Então expandir a parte de pesquisa, de inovação, não era tão relevante naquele momento. Nós precisávamos sim de velocidade para lançar muitos produtos rapidamente. Lançamos três negócios novos em dois anos e meio, três anos.” Para Giuseppe, a vinda da área de Pesquisa e Desenvolvimento para o guarda-chuva de Operações foi um dos pontos chave para o sucesso dessa estratégia. Com isso o processo de desenvolvimento de produtos passou por uma revisão profunda. “Se você quer garantir que o produto tenha a qualidade desejada, se quer garantir que o lançamento tenha a garantia de entrega, isso leva tempo. Então, como equilibrar Compliance, com flexibilidade, com capacidade e com velocidade?” Nessa revisão, Giuseppe acredita que a integração entre Marketing e Desenvolvimento foi fundamental. “Hoje em dia essas duas área trabalham em times totalmente integrados, diz. Não que isso não existisse antes. Mas como lembra o executivo, era uma integração menos estruturada do que é hoje. “Não se perdeu a capacidade de relacionamento entre as pessoas, pelo contrário, ganhamos mais estrutura para orientar essas relações nas diferentes etapas de desenvolvimento, e isso deu mais de segurança ao processo”, completa Giuseppe.

O processo de desenvolvimento do Grupo Boticário tem como base uma matriz que avalia a complexidade e a velocidade de lançamento desejada do produto. “Quanto mais complexo o produto, e mais rápido você quer lançar, maior o risco. Então, basicamente, o que as equipes decidem juntas é: ‘Qual o tamanho do risco que queremos correr?’. Se é um projeto de baixa complexidade os times podem acelerar o processo.”

Giuseppe explica essa modularização de projetos, no passado, não era formal. “Às vezes, projetos altamente complexos entravam em velocidades absurdas com um monte de riscos, não eram mapeados e acabavam dando errado. Isso, para mim, foi uma mudança relevante, foi a estruturação de um processo de desenvolvimento que permitiu você acelerar sem correr riscos exagerados no lançamento de produtos. A gente só conseguiu gerenciar uma complexidade desse tamanho porque estabelecemos um processo bem estruturado. Em desenvolvimento, hoje nós somos uma das empresas mais eficientes do mundo, sem sombra de dúvidas”, pontua.
A vinda do P&D para a área de Operações permitiu a Giuseppe potencializar a função da área de Suprimentos dentro do Grupo, que deixa de se dedicar apenas as questões de abastecimento e passa a olhar muito mais também para a inovação. Na área cosmética, a intervenção dos fornecedores na inovação é relevantíssima e o papel de Suprimentos é muito mais o de entender exatamente o negócio do fornecedor, de puxar coisas novas e explorar possibilidades. “O movimento se potencializou quando a gente trouxe P&D dentro de operações, porque antes eram áreas separadas e existia um certo nível de conflito porque Suprimentos tinha muito mais uma função de abastecimento, que era o papel original da área de Operações.

Revendo a Inovação
No conceito de Inovação do Grupo Boticário, a questão tecnológica é, naturalmente, um pilar fundamental. Mas a empresa é reconhecidamente especial para trabalhar a inovação em conceitos. “Isso, junto, traz produtos diferenciados. E o segredo da nossa velocidade é ter integrado de forma quase perfeita a inovação tecnológica com a inovação em conceitos, equilibrando as duas fontes de inovação”, explica. Giuseppe conta que hoje a estratégia de inovação do Grupo trabalha muito estes dois pilares.

Mas na visão de Giuseppe, existe um terceiro elemento, que está sendo revisto pela sua equipe: a estratégia da inovação de longo prazo. “Hoje, já tendo estabilizado as novas unidades, os conceitos e as propostas de valor dos diferentes negócios, estamos fazendo uma revisão completa da nossa estratégia de inovação para poder garantir a continuidade. Temos projetos suficientes no pipeline que nos dão a tranquilidade para fazermos essa revisão que vai demandar entre três e cinco anos para que seja colocada em prática.”

Flexibilidade e expansão
Ao longo dos últimos anos, Giuseppe conduziu um dos maiores programas de investimento em infraestrutura e bens de capital da história da indústria cosmética no Brasil. Foram R$ 650 milhões investidos na ampliação da fábrica do Grupo, no Paraná e a inauguração de uma nova fábrica e um novo centro de distribuição na Bahia, neste ano. Antes disso, ele já havia planejado e inaugurado o primeiro centro de distribuição do Grupo, em Registro, no interior de São Paulo em 2010 e a do Centro de Inovação da empresa, ao lado da atual sede do Grupo, em São José dos Pinhais, em 2012. São investimentos que vão garantir a capacidade produtiva e operacional do Grupo Boticário por um bom período de tempo, mesmo com a empresa seguindo a passos acelerados.

Mas quando entrou na empresa, em 2005, a capacidade produtiva propriamente dita não era um desafio para O Boticário naquela época, mas sim a ausência de um bom plano diretor. “Eu diria que esse foi um outro pilar importante que a gente trabalhou. O primeiro que nós fizemos em 2006, o plano diretor industrial e de distribuição – eu ainda tenho cópia deles – foram feitos aqui mesmo dentro de casa.” Para Giuseppe, na indústria de cosméticos, a eficiência de produção naquela época não era tão relevante já que o custo de transformação na cadeia de valor da maioria das categorias (maquiagem, por exemplo, é uma exceção) tinha um impacto pequeno. “A gente se preocupou muito naquela época em trabalhar a flexibilidade das linhas. Você tinha esse paradigma de ter de evitar fazer muitas trocas na linha de produção. Mas por que evitar essa etapa? Faz o setup que tem de fazer para atender ao cliente e, depois vá descobrir porque precisou mudar o setup, ou aprender a fazer esse setup mais rápido... então a eficiência caía num segundo plano. Hoje, com um cenário mais agressivo do ponto de vista de margens, de preços, obviamente isso vem mais à tona, e sem dúvida a eficiência de industrialização começa não a ser um diferencial, mas sim uma necessidade e é relevante.”

Aprendendo com os outros
Na área Logística, Giuseppe e sua equipe têm um desafio único no mercado, de atuar e distribuir por meio de diferentes canais. Uma unidade como O Boticário, com seus cerca de mil clientes tem uma necessidade completamente diferente de Eudora, com o seu modelo porta a porta e uma logística completamente diferente.
“Logística sempre foi um ponto muito forte aqui dentro. Nosso centro de distribuição de Registro e agora também o de São Gonçalo dos Campos, na Bahia, contam com altíssima tecnologia e sempre contaram, em particular, com uma elevadíssima qualidade das pessoas. Então eu diria que a tecnologia mais a inteligência da distribuição primária têm sido um fator chave de vantagem competitiva. Sempre tivemos linhas de pickings das mais avançadas possíveis, com transelevadores, etc. Nosso centro de distribuição de Registro tem indicadores de acuracidade e eficiência espetaculares referência para o mercado mundial. O diferencial da distribuição secundária tem sido a parceria com os transportadores, o trabalho extremamente fechado com eles para garantir a qualidade de entrega. No caso da venda direta, confesso que a gente trouxe transportadoras que têm experiência de venda direta para dentro, então, de alguma forma, a gente vem aprendendo com eles ainda. Estamos num patamar que garante a satisfação do serviço, mas ainda tem muitas oportunidades de melhoria.”

Onde estão os gargalos?
“Dos desafios do Brasil, acho que, sem dúvida, o maior para a indústria é a reforma tributária. A complexidade tributária do país é enorme. Outro grande desafio para a indústria cosmética é todo o ambiente regulatório, extremamente complexo e burocrático. Não estou dizendo que é ruim. Estou dizendo que poderia ser melhor, mais rápido e mais claro em muitas ocasiões. Não preciso nem falar da vergonha que o Brasil tem do ponto de vista de infraestrutura, de transporte, de logística. Isso sempre foi um gargalo e a gente aprendeu a conviver com isso.”

“Falando do Grupo, temos o desafio de sermos mais eficientes na nossa cadeia de fabricação e distribuição por conta de todo o arcabouço que construímos. Quando você faz isso devagar, você já coloca em um nível de eficiência adequado. Mas quando você faz isso muito rapidamente, como tivemos de fazer para acompanhar o nosso crescimento, você precisa ajustar para alcançar a eficiência máxima”, finaliza.

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