Testes em animais: dedo na ferida

A Diretiva Europeia que pretende banir o uso de animais para testes na indústria cosmética põe lenha numa discussão que, há anos gera debates acoalorados


Todos os anos, o mercado de cosméticos é inundado por novos produtos, cada vez mais eficientes, turbinados pela tecnologia, que não para de inovar quando o assunto é a descoberta de novos princípios ativos. Entretanto, por trás dessa enorme variedade de lançamentos disponíveis e desse avanço em termos tecnológicos está a questão dos testes realizados em animais que, em muitos casos, ainda são sacrificados em prol desse desenvolvimento.

Essa, sem dúvida, continua sendo a grande mancha na reputação do setor cosmético ao redor do planeta, que vive propalando aos quatro ventos o seu poder de inovação, às custas de altos investimentos em tecnologia que, no entanto, paradoxalmente ainda tem que recorrer muitas vezes a esse tipo de procedimento que, com toda a certeza, não agrada o novo consumidor, que tem as questões relacionadas à sustentabilidade ligadas intrinsecamente ao seu DNA.

Além de cruéis, as metodologias que utilizam esse tipo de avaliação, também são, muitas vezes, pouco precisas em seus resultados, por conta das diferenças biológicas entre o ser humano e os animais utilizados nos testes. Silvya Stuchi, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, exemplifica a questão com o teste de irritação ocular realizado em coelhos, que possuem de 30% a 50% de chances de não obterem os mesmos resultados em humanos. Dessa forma, a questão extrapola a crueldade contra os animais para invadir o território da ciência,  sendo que todos os atores que participam dessa discussão possuem um ponto em comum:  é necessário que a ciência avance, e os testes em animais nos remetam ao que há de mais antiquado em termos de ciência.

O assunto ganhou ainda mais visibilidade por conta da Diretiva Europeia, que em 2004 estipulou que estavam proibidos os testes em animais em produtos acabados que fossem comercializados no continente. Já em 2009, foi estabelecido um prazo de quatro anos para que todas as empresas cessassem o uso de animais em testes, incluindo os de matérias-primas, quando os cosméticos fossem destinados a olhos e pele.

Silvya Stuchi está otimista em relação à mudança da legislação no Velho Continente, pois acredita que essa é uma forma de estimular a produção científica para a busca de métodos alternativos: “A União Europeia está fazendo um favor à indústria pois, a um só tempo, instituiu a proposta de banir o uso de animais e ciência em cima disso”, pontua.

Já Kathy Guillermo, vice-presidente do Laboratório de Investigação do PETA, uma das mais atuantes entidades de proteção aos animais em todo o mundo, faz questão de registrar que a decisão da União Europeia de banir todos os testes até 2013 é uma das mais esclarecidas e ambiciosas peças da legislação nessa área em todo o mundo: “Desde 2009, a proibição dos testes cosméticos em animais têm ajudado a guiar a inovação e o desenvolvimento de novos métodos que substituem esses ensaios em todos os experimentos ao redor do planeta”, diz.

E a boa notícia é que essa tendência tem tudo para não ficar restrita à Europa.  Os especialistas do setor, como Simone Fanan, diretora científica da Associação Brasileira de Cosmetologia (ABC), acreditam que os outros mercados devem a Diretiva Europeia, não somente pela sua liderança natural nas questões que regulam o setor, mas também porque será obrigatório para qualquer empresa que queira comercializar seus produtos em solo europeu, que tanto estes quanto as matérias-primas utilizadas estejam em conformidade com a lei.

Por aqui, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) tem tratado a questão com muito cuidado, procurando observar quais serão as repercussões da medida no mercado europeu para, só depois, tentar “importá-la” para o Brasil. “A legislação brasileira na área cosmética segue estritamente as diretrizes europeias. Porém, com relação a esse ponto em específico, ela (a ANVISA) está sendo muito perspicaz, aguardando para ver os avanços que a Europa fará na busca por métodos alternativos aos testes em animais”, explica Simone.

Dinheiro: problema ou solução?
Contudo, a questão está longe de encerrar uma unanimidade. Nem todos veem de maneira tão positiva a posição europeia. De acordo com Simone Fanan, a capacidade de inovação das indústrias pode estar sendo ameaçada pela proibição: “O desenvolvimento de novas substâncias químicas totalmente inovadoras terão de ser atrasadas até que haja no mercado métodos alternativos validados”, preocupa-se.

A também professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas Silvia Berlanga acredita que a ciência não trabalha com datas fixadas, e que a proibição do uso de testes em animais na Europa pode ser um divisor de águas na escalada do desenvolvimento. “Essa data pode ser postergada se os legisladores europeus avaliarem que existem ainda alguns testes que necessitem dos animais”, afirma pesquisadora.

Vestindo a “pele” dos fabricantes, Patricia Pineau, diretora de Comunicação Científica do Grupo L’Oréal, diz que para a líder do segmento cosmético a proibição do uso de testes com animais não terá grandes efeitos. Isso porque, desde 1989, a empresa já não vem utilizando esses métodos. “Porém, as empresas que não investiram na pesquisa de metodologias alternativas de avaliação de compostos, com toda a certeza, vão ter problemas. Para aqueles que não estão preparados será, de fato, difícil seguir inovando”, acredita ela.

Uma das empresas pertencentes ao próprio Grupo L’Oréal, a SkinEthic, é a líder de mercado no desenvolvimento da epiderme artificial, similar à pele humana, porém, produzida em laboratório, que vem sendo muito utilizada pelas indústrias do setor cosmético em testes cutâneos. Só que, detalhe, para alcançar esse grau de independência dos testes em animais, foram necessários nada menos do que 30 anos de pesquisas e investimentos, orbitando a astronômica cifra de 600 milhões de euros. E, assim como a L’Oréal, empresas de peso do setor têm investido cada vez mais no desenvolvimento e validação de novas metodologias. É o caso, por exemplo, da norte-americana Johnson & Johnson e do grupo alemão Henkel.

Mas, é claro, nem todo mundo tem o poder de fogo dessas gigantes para fazer esses investimentos-monstros no desenvolvimento de tecnologias alternativas para deixar coelhinhos e ratos em paz. Aqui mesmo no Brasil – apesar de sermos o terceiro maior mercado cosmético do mundo, caminhando para a vice-liderança global no setor –, os investimentos da iniciativa privada em métodos alternativos são nulos, de acordo com a professora Silvya Stuchi, da Universidade de São Paulo. Ela, que é coordenadora de um projeto que desenvolve a “epiderme equivalente” (nome cientificamente correto da pele artificial) aqui no Brasil, acredita que as indústrias brasileiras do setor têm que se unir às universidades com o intuito de fomentar o desenvolvimento de novas metodologias, a fim de tentar reproduzir, em escala industrial, os avanços que já vêm sendo feitos no âmbito dos laboratórios acadêmicos.

Márcia de Paula, gerente regional de ingredientes cosméticos da fabricante de matérias-primas Symrise, concorda, em parte, com a afirmação da docente da USP. Para ela, a questão não é apenas de investimento, o que a indústria tem feito mas, também, de desenvolvimento, aperfeiçoamento e comercialização de novas metodologias de testes que, muitas vezes, ficam fora da órbita de atuação de muitas dessas empresas. Em função disso, a terceirização desse tipo de serviço tem sido a saída mais viável para a maioria delas. “Grande parte delas anda atrás de gente que já tenha essa expertise. “E, economicamente falando, às vezes, é muito mais viável procurar uma empresa especializada em fazer esses testes, do que montar um laboratório próprio dentro da sua estrutura”, enfatiza.

Outro problema recorrente é que, por conta da indisponibilidade de algumas metodologias de pesquisa no País, as empresas nacionais são obrigadas a enviar seus ingredientes para serem testados no exterior. Como agravante, a legislação brasileira permite que testes em animais ainda sejam realizados, caso não haja métodos alternativos à disposição. Grande dilema que se apresenta para as grandes empresas do segmento no que diz respeito a essa questão são, também, as diferentes legislações que regulamentam o tema. Por mais que uma empresa lute e, efetivamente, consiga eliminar o uso de animais nos testes de seus produtos, ainda existem mercados que exigem que alguns deles sejam testados nos bichinhos antes de esses itens serem disponibilizados ao consumo humano.

O maior exemplo é o caso do mercado chinês. A China possui um conselho que traça diretrizes para os fabricantes de cosméticos no país, e a legislação de lá exige que as empresas interessadas em comercializar em seu território, devem, obrigatoriamente, testar seus produtos em animais. E aí, entra a questão: como simplesmente dar as costas para um mercado consumidor de mais de 1 bilhão de habitantes e o quarto maior do segmento? Com a crise dos mercados dos países de primeiro mundo, os países emergentes se tornaram a galinha dos ovos de ouro das empresas que trabalham com operações ao redor do globo, e ficar fora do valioso mercado chinês, está longe de ser uma opção.

Empresas como a Avon, Estée Lauder e Mary Kay foram duramente criticadas pelo PETA por voltarem a realizar testes em animais, secretamente, para satisfazer às exigências das autoridades chinesas, depois de figurarem, durante décadas, entre aquelas que os havia oficialmente abolido na lista da instituição. Face ao intrincado problema, existem até órgãos reguladores, como é o caso da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), que acabam orientando as ações de empresas, por meio da publicação de um guia de testes para nortear as ações dos países signatários.

A importância da cadeia produtiva
Hoje em dia, quando se discute sustentabilidade, pessoas ligadas à indústria chegam ao consenso de que não é possível alcançar atitudes sustentáveis, se cada um só pensar apenas em si. Em outras palavras, é necessário cobrar atitudes ecologicamente responsáveis de todos os players da cadeia. E isso também se aplica ao protocolo dos testes realizados em animais: é preciso que a indústria exija de seus fornecedores maior investimento em métodos e tecnologias que torne viável prescindir deles ou, que na pior das hipóteses, reduza o sofrimento dos bichos.

Para isso, de acordo com Simone Fanan, os fabricantes devem cobrar o “Dossiê de Segurança’ de cada matéria-prima. Nesse documento, devem estar bem explicitadas todas as informações sobre as metodologias utilizadas para testar cada matéria-prima, bem como os resultados toxicológicos de cada uma delas. “Além de certificar a natureza dos testes, esse documento também é uma maneira de reduzir os custos, tendo em vista que as empresas não necessitarão refazer os testes já feitos pelos fornecedores”, ressalta a diretora científica da ABC.

Entretanto, apesar de essa ferramenta já estar disponível à indústria, Simone diz que o Brasil ainda tem muito o que avançar na seara da não realização nos testes em animais: “Ainda são poucas as empresas que exigem tais dossiês. Por aqui, a cultura de exigência para com os fabricantes de matérias-primas está somente começando”, lamenta ela.

Em que pese o fato de o Brasil ainda não estar caminhando a passos rápidos quanto os países da Europa para a extinção dos testes em animais, essa, irrecorrivelmente, é uma tendência. Porém, como avalia Márcia de Paula, da Symrise, a legislação só age em função dos movimentos do mercado.
Patricia Pineau, da L’Oréal, corrobora essa informação, acrescentando que a preocupação da companhia não são mais os testes in vivo com animais, mas sim com humanos. Atualmente, há um movimento na Europa para o desenvolvimento de ensaios que dispensem, de uma vez por todas, os testes in vivo. E isso inclui os testes em humanos que são realizados em voluntários, antes de os produtos serem lançados no mercado.

Exercício futurista? Pode até ser. Para o momento, basta aguardar para ver como toda essa movimentação que sacode a Europa chegará ao Brasil, e se, com ela, chegarão também os tão necessários investimentos em pesquisa e desenvolvimento científico, para fazer jus não só ao tratamento da delicada questão do fim dos testes em animais, como também à nossa posição de um dos mais importantes mercados de cosméticos do mundo.

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